Essas são as minhas impressões pessoais depois de ter assistido a parte da audiência pública sobre o EIA/RIMA do empreendimento “Implantação Industrial e Agrícola”, de responsabilidade da Usina Abengoa Bioenergia Agroindústria Ltda., convocada pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Processo nº. 84/2009).
Tive que me ausentar em virtude de ter duas crianças ainda pequenas das quais eu deveria me encarregar, no horário de saída da escola, do banho, do jantar... cuidados simples e indispensáveis.
E é justamente por ter duas crianças que fui à audiência. E é porque eu pretendo que elas cresçam sem comprometimentos de saúde ou de qualquer outra natureza – como todo pai e mãe desejam para seus filhos – para que possam me dar netos e esses possam me dar bisnetos, que possam me dar tataranetos... mesmo quando eu não estiver mais aqui. Mas eles estarão.
Como não pude ficar para fazer uso da tribuna, faço uso da palavra agora.
Antes do mais, por um dever de consciência, é preciso deixar claro que sou uma estudiosa do direito de empresa, tendo concluído tanto o meu mestrado como o meu doutorado nessa área. Entro todos os dias em sala de aula para lecionar o direito de empresa. Então, não só por dever de ofício, mas por acreditar que a empresa muito contribui com a sociedade moderna, defendo a atividade empresarial, a iniciativa privada, o empresário. É, portanto, importante dizer que qualquer manifestação ou expressão minha está sempre ligada a essa crença.
Vamos ao evento.
Atendo-me à apresentação da interessada, a bem da verdade, não houve nada de relevante ou, como diriam os pesquisadores, “n.d.n.” – nada digno de nota. Esperava mais...
Na sequência, a apresentação técnica do EIA-RIMA, propriamente dito, pela empresa contratada pela interessada para produzi-lo em cumprimento às exigências legais. Como se tratava de uma audiência pública, não esperava que esta parte se restringisse a meandros e conceitos técnicos erméticos. Mas, o que vimos foi um passeio pelo documento, que, quando chegou no ponto que realmente interessava – a listagem dos impactos, positivos e negativos – acelerou e nada esclareceu.
A conclusão inevitável é que as apresentações a cargo da interessada pouco esclareceram.
iniciou-se a participação pública, por assim dizer.
E é bem nesse ponto que desejo fazer algumas considerações antes de me posicionar.
A interessada teve o tempo que desejou para se articular para a ocasião, tendo em vista que a ela coube a iniciativa do licenciamento.
Mas as pessoas que ali compareceram – talvez por inexperiência, talvez por falta de hábito, talvez por desconhecimento, talvez por falta de tempo – não articularam suas falas.
No entanto, para uma cidadã descrente – que confessa que em alguns momentos chega a ser um ser humano descrente – foi revigorante estar ali.
A veemência da mensagem dos populares foi inequívoca: a comunidade em questão não quer o aumento da produção da cana no território que ocupa.
Mas não é um não querer maroto, caprichoso: é um repúdio esclarecido, que levantou questões como o número de autuações criminais ambientais da interessada na região, o sofisma do recolhimento fiscal a favor do município, os ônus que serão impostos à comunidade, especialmente, nas áreas próximas ao cultivo e de escoamento da produção, a discrepância de dados entre quatro documentos distintos apresentados, três da lavra da interessada e um da CETESB, além de diversas outras incoerências percebidas por alunos de graduação em engenharia ambiental da UNESP de Rio Claro ali presentes.
Destacou-se que os números são sempre muito altos e que há interesses nacionais envolvidos.
Preciso interromper por um instante o raciocínio para registrar meu apreço em encontrar num mesmo ambiente, para discutir um interesse difuso – é bom não esquecer... – pessoas comuns do povo, profissionais que se desvencilharam mais cedo de seus expedientes, servidores públicos, produtores rurais e uma turma de graduação de uma universidade pública, trazidos por seu professor...
Confesso que fiquei com uma ponta de inveja do Professor Marcus de Castro: levar sua turma do curso de engenharia ambiental da UNESP de Rio Claro, 150 km distante do aconchegante ambiente universitário, com toda a burocracia e responsabilidade que isso envolve, deixando o convívio familiar, para que ela pudesse ter a experiência de participar num espaço democrático de uma audiência pública sobre questão ambiental... E ficou claro que não foi um ato inopinado: preparou os meninos, deu-lhes o material para análise prévia, certamente discutiu pontos e debateu o evento em sala. Como deve ser, como manda o figurino. E os meninos estavam lá: interessados, concentrados, gente grande! Tenho a impressão que esse professor tem a intenção de formar mais que engenheiros ambientais... Parabéns!
A participação popular acalenta a esperança de que os membros da câmara e do conselho que irão decidir sobre a solicitação da interessada serão capazes de enxergar as mesmas contradições e incoerências, os buracos do projeto, que as pessoas comuns do povo e os alunos de graduação – fundamentadamente - perceberam...
De fato, as exposições feitas pela interessada, diretamente e por meio da empresa contratada para a elaboração do documento contribuíram para abalar a credibilidade na proposta, tantas foram as contradições.
Retomando, para que eu me aproprie das questões que estão dentro do meu quadrado, vamos ao que eu gostaria de ter dito na ocasião.
Toda empresa deve cumprir uma função social: isso está no livro sagrado – no jurídico, não no religioso – art. 5º, inciso XXIII. Função social da empresa é diferente de responsabilidade social da empresa. A primeira é um comando constitucional, imperativo, portanto. Na segunda, a empresa ocupa um espaço vazio deixado pelo Estado no cumprimento de algum dever seu. É voluntária.
Função social a empresa tem que cumprir – como cada um de nós – e cumpre quando atende a dois requisitos: estar ativa e regular. Pronto. Simples assim.
Isso porque, quando a empresa está em funcionamento, há valores – agregados sociais da empresa – sociais que se implementam a bem da coletividade, mesmo que isso não seja intenção do empresário.
E quais são esses agregados sociais? Postos de trabalho, incidência fiscal, avanço tecnológico, desenvolvimento do entorno e facilitação de acesso da população a bens e serviços.
A atividade empresarial é o local natural de abertura e manutenção de postos de trabalho. Mas é preciso que a relação de emprego se dê respeitando não só a legislação trabalhista, mas, de modo ético, a dignidade do trabalhador.
Acenar com milhares de postos de trabalho que perpetuam uma realidade perversa, voltada a pessoas sem escolaridade, sem nenhum tipo de qualificação emancipatória, no caso de empresas de grande porte, não pode ser tido como uma situação socialmente desejável. Ainda mais quando se trata de emprego sazonal, com condições vis, como já vimos acontecer aqui e bem foi lembrado pelo Marcos de Souza. Não é meta de vida para ninguém. Alegar que a população deseja que a indústria canavieira se perenize no município porque nisso os pais veem oportunidade para seus filhos se fixarem na cidade natal é argumento estúpido. Que pai quer para seu filho a profissão de cortador de cana? Se não soubéssemos que os expositores são pessoas de bem, esse argumento até pareceria má-fé.
Além do mais, esse impacto - citado como positivo – é contraditório com a prometida mecanização completa até 2014. Uma das grandes questões enfrentadas pelo direito do trabalho na atualidade no Brasil é justamente o desemprego causado pela mecanização de lavouras.
Postos de trabalho por postos de trabalho, a China tem aos milhões. Quantidade nos interessa, mas não acima da qualidade.
Quando à acenada contribuição fiscal de seis dígitos propalada pela interessada, afirmando que com isso muito contribui para o município, há um detalhe pertinente: as contribuições e impostos exibidos vão para os cofres da União e do Estado. Salvo engano – não consegui visualizar o slide com clareza...-, não há no rol apresentado nenhum imposto municipal... mas será o município que terá de lidar com as demandas no setor de saúde, educação, segurança e habitação decorrentes da atividade da interessada. Verdadeiro sofisma.
Investimento em tecnologia certamente há. Mas, ao que parece, exclusivamente referente à otimização da produção e dos lucros. Não houve nenhuma indicação precisa e segura de investimentos para minimizar os efeitos deletérios – constatados no EIA-RIMA – para a comunidade. Mão única! O avanço tecnológico que interessa à sociedade é o que respeita o ser humano e preserva o meio ambiente. Princípio da precaução. E aqui volta a questão da mecanização para evitar as queimadas que desempregará muita gente. Se ficar, o bicho come... se correr, o bicho pega.
Desenvolvimento do entorno certamente que pode haver. Mas ele deve respeitar, além das posturas legais, a história e a vocação locais. Desenvolvimento nos interessa. Pseudodesenvolvimento, não. Qual é o dinheiro que ficará no município? O salário dos operários? Novamente, surge a questão dos ônus sem bônus para a comunidade local.
E a facilitação de acesso da população a bens e serviços só é de ser considerada quando se respeita o direito do consumidor e o interesse da população, o que parece não estar sendo o caso.
Percebe-se que, pelo que foi apresentado, a interessada não fez bem a lição de casa... não está cumprindo a sua função social, como deveria e poderia fazer.
A atividade econômica ocupa uma posição central na sociedade atual: é na empresa que as pessoas passam a maior parte do seu tempo, é onde se relacionam, é onde ganham seu dinheiro e é onde o gastam, também. Daí sua responsabilidade: não pode se dar ao luxo de errar. Não uma grande empresa, não uma multinacional, que tem toda a condição e estrutura para lucrar de modo ético e legítimo.
O papel do advogado empresarialista na atualidade, além de suas funções habituais - tenho insistido com meus alunos - passa por esclarecer o empresário e direcionar suas ações a valores importantes para a sobrevivência não só da sua empresa, mas da humanidade.
Nada contra ganhar dinheiro. Dinheiro é bom. Eu também gosto. Todos precisamos.
O lucro é a razão de ser da empresa. Sem ele, ela não se justifica, deixa de existir. Ele é o salário do empresário, que investe e corre riscos. Merecido.
Todavia o desvirtuamento da empresa e do lucro, numa lógica perversa e imediatista não interessa mais a ninguém.
A economia, assim como o direito, só tem sentido para dignificar o ser humano. Assim está no art. 170 do livro sagrado: a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna... E tem que ser possível ganhar dinheiro assim. Não se alimenta a pueril expectativa de que as empresas passem a ser entidades filantrópicas. E nem é necessário. Basta ter um olhar mais amplo e boa-fé. Lucro em ciclo virtuoso.
Parece que essa cidade de artistas só quer ser deixada em paz... E há motivos ponderosos para tanto.
Pedimos às autoridades competentes, investidas do poder de analisar a situação em nosso nome, a mesma atenção simples, cuidadosa e indispensável que temos com nossas crianças, para se chegar a conclusão inegável de que os riscos são maiores que os benefícios para essa comunidade. Princípio da precaução, senhores.