segunda-feira, 23 de maio de 2016


A PEC 065/2012 e o mundo do faz de conta.



Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o significado de PEC é Projeto de Emenda Constitucional e não Prometo Enterrar o Controle... É apenas uma coincidência que a proposição da emenda constitucional seja identificada pelas mesmas iniciais que prometo enterrar o controle. Toda e qualquer proposta de emenda constitucional é assim identificada: PEC. Isso não é uma peculiaridade da 065/2012...

O meio utilizado para a tentativa de introduzir a novidade da proibição de suspensão de obras após a licença ambiental no ordenamento jurídico nacional foi a emenda constitucional. Seus autores entenderam, talvez, que o melhor caminho para garantir de vez e de uma só vez que as chateações ambientais cessem para bem dos administradores públicos, das obras e da população em geral, seria introduzir, meter, enfiar a novidade na Constituição, na Lei Maior, na Magna Carta, para não restarem dúvidas ou chorumelas.

A proposta é de dezembro de 2012. Desafortunadamente, de 10 de dezembro de 2012. E agora foi aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, ficando prontinha para ir à Plenário, o que vem causando alguma indignação nos ecochatos de plantão.

Pois bem.

A ideia é acrescer um parágrafo ao artigo 225 da Constituição da República – único que se ocupa da questão ambiental nos 350 dispositivos do texto constitucional mais as disposições transitórias -, que seria o 7º, para dizer que:

“7º A apresentação do estudo prévio de impacto ambiental importa autorização para a execução da obra, que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente.”

É, porém, leviano condenar sem ouvir os argumentos da parte. Por isso, antes de qualquer coisa, o que precisamos fazer é conhecer a Exposição de Motivos da proposição. Como sentenciar que a proposta é ruim, sem conhecer os motivos que a originaram?

Vamos a eles.

Os Senadores da República signatários da PEC 065/2012 justificam o acréscimo do parágrafo 7º ao artigo 225 da Constituição da República em razão de entenderem que uma das maiores dificuldades da Administração Pública brasileira, e, também uma das razões principais para o seu desprestígio, que se revela à sociedade como manifestação pública de ineficiência, consiste nas obras inacabadas ou nas obras ou ações que se iniciam e são a seguir interrompidas mediante decisão judicial de natureza cautelar ou liminar, resultantes, muitas vezes, de ações judiciais protelatórias, aduzindo que, como Senadores, ouvem, diuturnamente, reclamações de prefeitos municipais, governadores de estados e mesmo representantes do Poder Executivo federal no sentido de que uma obra fundamental para atender às necessidades da sociedade brasileira se encontra paralisada por muito tempo, resultando muitas vezes em severo prejuízo para a prestação de serviços públicos fundamentais, como educação e saúde, como também em obras importantes para a sociedade, como pontes e rodovias.

Com a proibição constitucional de suspensão ou cancelamento de obras, os signatários da proposta entendem que muito tempo e desperdício de recursos públicos vultosos serão poupados, bem como se estará dando concretude à vontade da população, à soberania popular, que consagrara, em urnas, um programa de governo, e com ele, suas obras e ações essenciais.

Dizem os Senadores:

“Um chefe de Poder Executivo, como um prefeito municipal, tem quatro anos de mandato. Caso não consiga tornar ágeis as gestões administrativas respectivas, inclusive as licitações, licenças ambientais e demais requisitos para a realização de uma obra pública de vulto, encerrará o seu mandato sem conseguir realizar as medidas que preconizara em seu programa de governo, por maior que seja a boa vontade que o anima.

Pior do que isso: muitas vezes chega a iniciar a obra, mas a conclusão é frustrada por uma decisão judicial que, não raro, resulta da inquietude da oposição diante dos possíveis efeitos positivos, junto à cidadania, de uma dada obra pública. Tudo isso ocorre em flagrante prejuízo não ao prefeito ou à prefeitura, apenas, mas para todos os habitantes do lugar. Ademais disso, é sabidamente custoso manter uma obra pública paralisada, e esses custos são muito mais do que financeiros, pois até mesmo a democracia e a representação são desgastadas quando estamos diante de quadros dessa natureza.” 

A exposição de motivos a isso se limita, encerrando-se, na sequência, preconizando que a proposta assegurará que uma obra uma vez iniciada, após a concessão da licença ambiental e demais exigências legais, não poderá ser suspensa ou cancelada senão em face de fatos novos, supervenientes à situação que existia quando elaborados e publicados os estudos a que se refere a Carta Magna.

Arrematam o documento dizendo estarem convencidos de que a adoção desta medida contribuirá para a afirmação dos mais respeitáveis princípios da administração pública, a eficiência e a economicidade inclusive.

Pois bem.

Apresentada uma proposta legislativa, o projeto de lei deve ser submetido à apreciação de comissões competentes para se pronunciarem sobre o mérito; à Comissão de Finanças e Tributação, quando estiverem envolvidos aspectos financeiros e orçamentários públicos; à Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania, em qualquer caso, para o exame de constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, bem como para a adequação da redação, quando necessário.

No presente caso, a PEC 065/2012 foi encaminhada apenas à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, embora a matéria seja de natureza ambiental, a Comissão de Meio Ambiente do Senado não foi ouvida.

E o que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado achou da PEC 065/2012? Vamos ao seu parecer.

No relatório do parecer está que a proposta visa “assegurar a continuidade de obra pública após a concessão da licença ambiental (...) para garantir a celeridade e a economia de recursos em obras públicas sujeitas ao licenciamento ambiental, ao impossibilitar a suspensão ou cancelamento de sua execução após a concessão da licença.”

A análise da Comissão deve ser feita em duas vertentes: quanto à admissibilidade e quanto ao mérito.

Em relação à admissibilidade, a Comissão considerou que todos os aspectos formais para o processamento de um projeto de emenda à Constituição estavam atendidos.

No mérito, a Comissão considerou que “efetivamente, trata-se de proposta que visa garantir segurança jurídica à execução das obras públicas, quando sujeitas ao licenciamento ambiental”, pois é “certo é que há casos em que ocorrem interrupções de obras essenciais ao desenvolvimento nacional e estratégicas ao País em razão de decisões judiciais de natureza cautelar ou liminar, muitas vezes protelatórias.”

Na visão da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, “claramente se pode observar que a proposta não objetiva afastar a exigência do licenciamento ambiental ou da apresentação de um de seus principais instrumentos de avaliação de impacto, o EIA” e considera que a proposta em nada afeta “o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e consagra princípios constitucionais da administração pública, como a eficiência e a economicidade” e, por tais motivos, votam pela aprovação da matéria, registrando, inclusive, o Senador João Capiberibe, relator, que o projeto não só atendia à constitucionalidade e juridicidade, mas, também, à boa técnica legislativa.

Agora que já conhecemos a motivação dos autores e a posição daqueles a quem cabe velar pela constitucionalidade, juridicidade e boa técnica podemos comentar.

Alteração legislativa de tal vulto, como é a PEC 056/2012, deve ter robusta justificativa. O motivo do desagrado dos ocupantes de cargos executivos e o apontamento vago do interesse público, de modo genérico, sem dados que demonstrem, efetivamente, o problema, revela-se insuficiente.

É certo que o primeiro signatário da proposta, Senador Acir Gurgacz (PDT-GO), ao defendê-lo em Plenário no dia 20/05/2016, sexta-feira passada, apontou que, segundo levantamento da consultoria legislativa, até junho do ano passado, havia 12 usinas hidrelétricas e 1 usina nuclear com obras paradas por conta de pendências de licenciamento ambiental. Na mesma situação se encontram 26 obras de linhas de transmissão de energia elétrica, 10 obras de ferrovias, 20 obras de rodovias federais, 6 parques eólicos, 14 empreendimentos de mineração, 6 gasodutos, e pelo menos outros 16 empreendimentos de infraestrutura sob responsabilidade do governo federal paradas por conta de entraves ambientais.

Mas esses dados, ao que parece, não atendem ao rigor estatístico e citam, como visto, pendências nos licenciamentos. Não foram mostrados números sobre relação entre ordens judiciais e paralisação de obras.

Segundo a Agência Senado, o Senador Gurgacz ressaltou que o objetivo da PEC está sendo erroneamente interpretado por ONGs ambientalistas e pelo Ministério Público, pois ela pretende apenas impedir que se interrompam as obras que já tenham a licença ambiental concedida  e não acabar com a necessidade de licenciamento ambiental. Nas palavras do Senador, “a questão não é flexibilizar e deixar menos rígidos os controles. É preciso tornar os controles racionais sem descuidar da legalidade. Para isso, os marcos legais precisam ser revisados para desatar o nó burocrático.

Bem, dois aspectos saltam aos olhos.

O primeiro se refere ao que foi considerado boa técnica legislativa.

A motivação cita obras públicas e a proibição de sua suspensão ou cancelamento após o licenciamento ambiental.

Mas, porém, no entanto, todavia, contudo, o texto proposto fala mais que isso. Vamos retomá-lo: “A apresentação do estudo prévio de impacto ambiental importa autorização para a execução da obra, que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente.”

O que está escrito é que: i. a apresentação  do EIA importa autorização, ou seja, a simples apresentação do estudo resulta, tem como consequência a autorização. Esse o significado de importar no contexto da frase. Do modo como está escrito, cria direito para o interessado de obter a autorização com a simples apresentação do estudo; ii. execução da obra e só... não se refere ao caráter público da obra, portanto, aplica-se às obras privadas também, já que o texto não limita; iii. pelas mesmas razões, levando à situação de que nenhuma obra poderá ser suspensa por razões de natureza ambiental. E a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania não viu que o que está escrito é diferente do que é pretendido.

É perceptível, portanto, que os receios das ONGs ambientalistas e do MP são fundados: a partir daí, toda e qualquer obra no país obterá a autorização ambiental mediante a simples apresentação de um estudo e não poderá ser suspensa ou cancelada em razão de questões ambientais. É o que está escrito. Prometo enterrar o controle...

Não existe boa técnica legislativa se o texto diz coisa diferente do que é a justificativa do projeto.

O segundo aspecto, se refere ao mérito da proposição.

Por meio de um singelo levantamento, chegou-se à conclusão que há obras públicas demais paradas no país em razão de pendências ambientais. Mas, qual a representação estatística disso? Além do mais, a exposição de motivos generaliza as decisões judiciais de paralisação classificando-as de meramente protelatórias, frutos da inquietude da oposição diante dos possíveis efeitos positivos, junto à cidadania.

Ora, onde o levantamento estatístico desse dado? Estaria o Judiciário nacional submetido, sem nenhum critério, aos desgostos da oposição? Ou seja, os pedidos de paralisação de obras são atendidos pelo Judiciário baseados em simples insatisfação política da oposição, vazios de argumentos técnicos a embasá-los? Que feitiço seria esse que obscureceria a visão dos magistrados brasileiros a ponto de atenderem, sem qualquer critério, aos caprichosos de uma oposição desditosa?

Se pensarmos bem, a emenda inclusive atenta contra o sistema de freios e contrapesos das funções do Estado. Há um problema reiterado enfrentado pelo Executivo? Suprima-se a atuação do Judiciário sobre ele e ele desaparece, como que por encanto!

A questão, na verdade, é outra. O Senado se manteve na superfície do problema.

Ah, sim, porque, de fato, há um problema. Mas não é esse identificado pelo Senado: que as obras públicas ficam paradas, acumulando prejuízos, porque o Judiciário crente, ingênuo, incauto, atende à vontade da oposição, travestida em entraves ambientais, de emperrar a vida dos Chefes do Executivo, para deixa-los mal com a população.

O problema revelado pela situação exposta é de maior profundidade... Não é a oposição, nem o Judiciário, nem os “nós burocráticos” dos marcos legais ambientais que levam a ela: é falta de planejamento adequado e efetividade nos estudos.

Também eu, como o Senado, não tenho dados em mãos. Mas, se uma PEC pode ser considerada sem eles, um breve comentário não deverá ser desconsiderado por esse motivo, até porque muito mais inofensivo do que uma alteração na Constituição. Porém, invoco fatos de conhecimento geral a favor da minha tese, como, por todos, o desastre de Mariana, para demonstrar que, via de regra, os estudos apresentados são falhos, deficientes. Não vou entrar aqui na questão se isso acontece dolosa ou culposamente, pois, de fato, não vem ao caso. O caso é que os estudos são insuficientes e as autoridades ambientais, por uma série de circunstâncias que também não há espaço para comentar aqui, se contentam com o cumprimento meramente formal de exigências. E o meio ambiente não está sujeito a formalidades. O meio ambiente, por mais que isso nos desagrade e seja uma grande descortesia de sua parte, não está nem aí para as formalidades humanas.

O que acontece, então, é que aqueles que têm por missão a proteção ambiental, ONGs e MP, não se contentam com a formalidade: precisam da efetividade e vão ao Judiciário buscá-la. Vemos isso acontecer cotidianamente.

Se a ideia é fazer com que as obras iniciadas não parem e economizar recursos, a única forma de garantir isso é que os estudos levem em conta a realidade e deixem de tentar construir artificialidades para obter aprovação que não se sustenta.

O problema, então, na verdade, é que não estamos realizando os estudos de modo competente. Esse é o problema e é a ele que nossos esforços e recursos têm que se voltar.

É trabalhoso lidar com isso. Mexe com uma cultura instalada. Mas, é mais uma daquelas situações nas quais – parafraseando J.K. Rolling – “temos que escolher entre o certo e o fácil”...

Proibir o Judiciário de suspender obras por razões ambientais depois de obtido o licenciamento (que passará a ser conseguido mediante a mera apresentação do estudo, segundo a PEC), é tratar a febre do paciente com pneumonia e só.

A PEC se ocupa de um sintoma e não da doença em si...

O que atende aos princípios constitucionais da eficiência e economicidade é que a proposição de obras seja realista, que os estudos sejam efetivos, de tal forma que, uma vez obtida a autorização, ela também seja efetiva. Não restarão arestas a serem aparadas pelo Judiciário.

A questão ambiental é de interesse geral. Nenhuma obra, seja privada ou pública – especialmente a pública – está acima da avaliação dos impactos ambientais. O contido na exposição de motivos e no pronunciamento do Senador em Plenário reforça aquilo que já sabemos: as normas ambientais que devem ser vistas como normas de caráter difuso e protetivas da vida presente e futura, asseguradoras de boa parte da dignidade humana, são encaradas como meras formalidades que podem ser mudadas ao desejo humano o que é, logicamente, um erro, tendo em vista que não lida com grandezas humanas.

Gostemos ou não, há alguns limites da natureza que se impõem a nós e a eles devemos nos submeter.

Isso implica em que não podemos mais agir nos espaços que ocupamos? Não. Isso significa dizer que para intervir nos espaços que ocupamos devemos considerar os limites físicos, químicos, biológicos e usar a ciência para buscar formas de intervir com o mais baixo impacto possível. De verdade, não de faz de conta.

O acidente de Mariana, cuja lama nem endureceu de todo ainda, é, para nós, humanos, um choque de realidade. E essa realidade não é sensível a formalidades e nós burocráticos. Delírio coletivo nosso se enxergamos diferente disso. O colírio de Mariana parece não ter tido efeito, ainda.

Nesse caso da PEC 065, a questão ambiental é encarada de maneira tão exclusivamente formal que sequer se considerou que tivesse que passar pela Comissão de Meio Ambiente. Ou seja: não é a questão ambiental; é a questão meramente formal.

A proposta, portanto, que, aparentemente é bastante singela, inofensiva e benéfica para toda a sociedade, traz embutido um grande potencial de desmantelamento do sistema de controle ambiental prévio. Tão inofensiva como um filhote de leão, cinco anos depois.

“Não se concebe que um ato normativo de qualquer natureza seja redigido de forma obscura, que dificulte ou impossibilite sua compreensão. A transparência do sentido dos atos normativos, bem como sua inteligibilidade, são requisitos do próprio Estado de Direito”. É o que diz o Manual de Redação da Presidência da República.

Será mais um caso de dar “Melhoral” para um doente com infecção galopante...