A PEC
065/2012 e o mundo do faz de conta.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o significado de PEC é Projeto de Emenda Constitucional e
não Prometo Enterrar o Controle... É
apenas uma coincidência que a proposição da emenda constitucional seja
identificada pelas mesmas iniciais que prometo
enterrar o controle. Toda e qualquer proposta de emenda constitucional é
assim identificada: PEC. Isso não é uma peculiaridade da 065/2012...
O meio utilizado para a tentativa de introduzir a novidade da
proibição de suspensão de obras após a licença ambiental no ordenamento
jurídico nacional foi a emenda constitucional. Seus autores entenderam, talvez,
que o melhor caminho para garantir de vez e de uma só vez que as chateações
ambientais cessem para bem dos administradores públicos, das obras e da
população em geral, seria introduzir, meter, enfiar a novidade na Constituição,
na Lei Maior, na Magna Carta, para não restarem dúvidas ou chorumelas.
A proposta é de dezembro de 2012. Desafortunadamente, de 10
de dezembro de 2012. E agora foi aprovada na Comissão de Constituição, Justiça
e Cidadania do Senado Federal, ficando prontinha para ir à Plenário, o que vem
causando alguma indignação nos ecochatos de plantão.
Pois bem.
A ideia é acrescer um parágrafo ao artigo 225 da Constituição
da República – único que se ocupa da questão ambiental nos 350 dispositivos do
texto constitucional mais as disposições transitórias -, que seria o 7º, para
dizer que:
“7º A apresentação do estudo prévio de impacto ambiental importa autorização para a execução da obra, que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente.”
É, porém, leviano condenar sem ouvir os argumentos da parte.
Por isso, antes de qualquer coisa, o que precisamos fazer é conhecer a Exposição de Motivos da proposição. Como
sentenciar que a proposta é ruim, sem conhecer os motivos que a originaram?
Vamos a eles.
Os Senadores da República signatários da PEC 065/2012
justificam o acréscimo do parágrafo 7º ao artigo 225 da Constituição da
República em razão de entenderem que uma
das maiores dificuldades da Administração Pública brasileira, e, também uma
das razões principais para o seu desprestígio, que se revela à sociedade como
manifestação pública de ineficiência, consiste nas obras inacabadas ou nas
obras ou ações que se iniciam e são a seguir interrompidas mediante decisão judicial de natureza cautelar ou liminar,
resultantes, muitas vezes, de ações
judiciais protelatórias, aduzindo que, como Senadores, ouvem,
diuturnamente, reclamações de prefeitos municipais, governadores de estados e
mesmo representantes do Poder Executivo federal no sentido de que uma obra fundamental para atender às
necessidades da sociedade brasileira se encontra paralisada por muito
tempo, resultando muitas vezes em severo prejuízo para a prestação de serviços
públicos fundamentais, como educação e
saúde, como também em obras importantes para a sociedade, como pontes e
rodovias.
Com a proibição constitucional de suspensão ou cancelamento
de obras, os signatários da proposta entendem que muito tempo e desperdício de
recursos públicos vultosos serão poupados, bem como se estará dando concretude
à vontade da população, à soberania popular, que consagrara, em
urnas, um programa de governo, e com ele,
suas obras e ações essenciais.
Dizem os Senadores:
“Um chefe de Poder Executivo, como um
prefeito municipal, tem quatro anos de mandato. Caso não consiga tornar ágeis as gestões administrativas
respectivas, inclusive as licitações, licenças ambientais e demais requisitos
para a realização de uma obra pública de vulto, encerrará o seu mandato sem conseguir realizar as medidas que
preconizara em seu programa de governo, por
maior que seja a boa vontade que o anima.
Pior do que isso: muitas vezes chega
a iniciar a obra, mas a conclusão é frustrada
por uma decisão judicial que, não raro, resulta
da inquietude da oposição diante dos possíveis efeitos positivos, junto à
cidadania, de uma dada obra pública. Tudo isso ocorre em flagrante prejuízo não ao prefeito ou à
prefeitura, apenas, mas para todos os
habitantes do lugar. Ademais disso, é sabidamente custoso manter uma obra
pública paralisada, e esses custos são
muito mais do que financeiros, pois até mesmo a democracia e a
representação são desgastadas quando estamos diante de quadros dessa natureza.”
A exposição de motivos
a isso se limita,
encerrando-se, na sequência, preconizando que a proposta assegurará que uma
obra uma vez iniciada, após a concessão
da licença ambiental e demais exigências legais, não poderá ser suspensa ou
cancelada senão em face de fatos novos, supervenientes à situação que existia
quando elaborados e publicados os estudos a que se refere a Carta Magna.
Arrematam o documento dizendo estarem convencidos de que a adoção desta medida contribuirá para a afirmação
dos mais respeitáveis princípios da administração pública, a eficiência e a
economicidade inclusive.
Pois bem.
Apresentada uma proposta legislativa, o projeto de lei deve
ser submetido à apreciação de comissões competentes para se pronunciarem
sobre o mérito; à Comissão de Finanças e Tributação, quando estiverem
envolvidos aspectos financeiros e orçamentários públicos; à Comissão de
Constituição, Justiça e de Cidadania, em qualquer caso, para o exame de
constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, bem como para a
adequação da redação, quando necessário.
No presente caso, a PEC 065/2012 foi encaminhada apenas à
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, embora a matéria seja de
natureza ambiental, a Comissão de Meio
Ambiente do Senado não foi ouvida.
E o que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do
Senado achou da PEC 065/2012? Vamos ao seu parecer.
No relatório do parecer está que a proposta visa “assegurar a
continuidade de obra pública após a concessão da licença ambiental (...)
para garantir a celeridade e a economia de recursos em obras públicas sujeitas
ao licenciamento ambiental, ao impossibilitar a suspensão ou cancelamento de
sua execução após a concessão da licença.”
A análise da Comissão deve ser feita em duas vertentes:
quanto à admissibilidade e quanto ao mérito.
Em relação à admissibilidade, a Comissão considerou que todos
os aspectos formais para o processamento de um projeto de emenda à Constituição
estavam atendidos.
No mérito, a Comissão considerou que “efetivamente, trata-se de proposta que visa garantir segurança jurídica à execução das obras
públicas, quando sujeitas ao licenciamento ambiental”, pois é “certo é que há casos em que ocorrem interrupções de
obras essenciais ao desenvolvimento nacional e estratégicas ao País em razão de
decisões judiciais de natureza cautelar ou liminar, muitas vezes protelatórias.”
Na visão da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, “claramente
se pode observar que a proposta não
objetiva afastar a exigência do licenciamento ambiental ou da apresentação
de um de seus principais instrumentos de avaliação de impacto, o EIA” e
considera que a proposta em nada afeta “o
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e consagra princípios constitucionais
da administração pública, como a eficiência
e a economicidade” e, por tais motivos, votam pela aprovação da matéria,
registrando, inclusive, o Senador João Capiberibe, relator, que o projeto não
só atendia à constitucionalidade e juridicidade, mas, também, à boa técnica legislativa.
Agora que já conhecemos a motivação dos autores e a posição
daqueles a quem cabe velar pela constitucionalidade, juridicidade e boa técnica
podemos comentar.
Alteração legislativa de tal vulto, como é a PEC 056/2012,
deve ter robusta justificativa. O motivo do desagrado dos ocupantes de cargos
executivos e o apontamento vago do interesse público, de modo genérico, sem
dados que demonstrem, efetivamente, o problema, revela-se insuficiente.
É certo que o primeiro signatário da proposta, Senador Acir
Gurgacz (PDT-GO), ao defendê-lo em Plenário no dia 20/05/2016, sexta-feira
passada, apontou que, segundo levantamento da consultoria legislativa, até
junho do ano passado, havia 12 usinas
hidrelétricas e 1 usina nuclear com obras paradas por conta de pendências de licenciamento ambiental.
Na mesma situação se encontram 26 obras de linhas de transmissão de energia
elétrica, 10 obras de ferrovias, 20 obras de rodovias federais, 6 parques
eólicos, 14 empreendimentos de mineração, 6 gasodutos, e pelo menos outros 16 empreendimentos
de infraestrutura sob responsabilidade do governo federal paradas por conta de entraves ambientais.
Mas
esses dados, ao que parece, não atendem ao rigor estatístico e citam, como
visto, pendências nos licenciamentos.
Não foram mostrados números sobre relação entre ordens judiciais e paralisação
de obras.
Segundo
a Agência Senado, o Senador Gurgacz ressaltou que o objetivo da PEC está sendo erroneamente
interpretado por ONGs ambientalistas e pelo Ministério Público, pois ela pretende apenas impedir que se interrompam as obras que já
tenham a licença ambiental concedida e não acabar com a necessidade de licenciamento ambiental. Nas palavras
do Senador, “a questão não é flexibilizar e deixar menos rígidos
os controles. É preciso tornar os controles
racionais sem descuidar da legalidade. Para isso, os marcos legais precisam ser revisados para desatar o nó burocrático.”
Bem, dois
aspectos saltam aos olhos.
O primeiro se
refere ao que foi considerado boa técnica legislativa.
A motivação
cita obras públicas e a proibição de sua suspensão ou cancelamento após o
licenciamento ambiental.
Mas, porém, no
entanto, todavia, contudo, o texto
proposto fala mais que isso. Vamos retomá-lo: “A apresentação do
estudo prévio de impacto ambiental importa
autorização para a execução da obra,
que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas
mesmas razões a não ser em face de fato superveniente.”
O que está escrito é que: i.
a apresentação do EIA importa
autorização, ou seja, a simples apresentação do estudo resulta, tem como
consequência a autorização. Esse o significado de importar no contexto da frase. Do modo como está escrito, cria
direito para o interessado de obter a autorização com a simples apresentação do
estudo; ii. execução da obra e só... não se refere ao caráter
público da obra, portanto, aplica-se às obras privadas também, já que o texto
não limita; iii. pelas mesmas razões, levando à situação de que nenhuma obra poderá
ser suspensa por razões de natureza ambiental. E a Comissão de Constituição,
Justiça e Cidadania não viu que o que está escrito é diferente do que é
pretendido.
É perceptível, portanto, que os receios das ONGs
ambientalistas e do MP são fundados: a partir daí, toda e qualquer obra no país
obterá a autorização ambiental mediante a simples apresentação de um estudo e
não poderá ser suspensa ou cancelada em razão de questões ambientais. É o que
está escrito. Prometo enterrar o
controle...
Não existe boa técnica legislativa se o texto diz coisa
diferente do que é a justificativa do projeto.
O segundo aspecto, se refere ao mérito da proposição.
Por meio de um singelo levantamento, chegou-se à conclusão
que há obras públicas demais paradas no país em razão de pendências ambientais.
Mas, qual a representação estatística disso? Além do mais, a exposição de
motivos generaliza as decisões judiciais de paralisação classificando-as de
meramente protelatórias, frutos da inquietude
da oposição diante dos possíveis efeitos positivos, junto à cidadania.
Ora, onde o levantamento estatístico desse dado? Estaria o
Judiciário nacional submetido, sem nenhum critério, aos desgostos da oposição?
Ou seja, os pedidos de paralisação de obras são atendidos pelo Judiciário
baseados em simples insatisfação política da oposição, vazios de argumentos
técnicos a embasá-los? Que feitiço seria esse que obscureceria a visão dos
magistrados brasileiros a ponto de atenderem, sem qualquer critério, aos
caprichosos de uma oposição desditosa?
Se pensarmos bem, a emenda inclusive atenta contra o sistema
de freios e contrapesos das funções do Estado. Há um problema reiterado
enfrentado pelo Executivo? Suprima-se a atuação do Judiciário sobre ele e ele
desaparece, como que por encanto!
A questão, na verdade, é outra. O Senado se manteve na
superfície do problema.
Ah, sim, porque, de fato, há um problema. Mas não é esse
identificado pelo Senado: que as obras públicas ficam paradas, acumulando
prejuízos, porque o Judiciário crente, ingênuo, incauto, atende à vontade da
oposição, travestida em entraves ambientais, de emperrar a vida dos Chefes do
Executivo, para deixa-los mal com a população.
O problema revelado pela situação exposta é de maior
profundidade... Não é a oposição, nem o Judiciário, nem os “nós burocráticos”
dos marcos legais ambientais que levam a ela: é falta de planejamento adequado
e efetividade nos estudos.
Também eu, como o Senado, não tenho dados em mãos. Mas, se
uma PEC pode ser considerada sem eles, um breve comentário não deverá ser
desconsiderado por esse motivo, até porque muito mais inofensivo do que uma
alteração na Constituição. Porém, invoco fatos de conhecimento geral a favor da
minha tese, como, por todos, o desastre de Mariana, para demonstrar que, via de
regra, os estudos apresentados são falhos, deficientes. Não vou entrar aqui na
questão se isso acontece dolosa ou culposamente, pois, de fato, não vem ao
caso. O caso é que os estudos são insuficientes e as autoridades ambientais,
por uma série de circunstâncias que também não há espaço para comentar aqui, se
contentam com o cumprimento meramente formal
de exigências. E o meio ambiente não está sujeito a formalidades. O meio ambiente, por mais que isso nos desagrade e
seja uma grande descortesia de sua parte, não
está nem aí para as formalidades humanas.
O que acontece, então, é que aqueles que têm por missão a
proteção ambiental, ONGs e MP, não se contentam com a formalidade: precisam da
efetividade e vão ao Judiciário buscá-la. Vemos isso acontecer cotidianamente.
Se a ideia é fazer com que as obras iniciadas não parem e
economizar recursos, a única forma de
garantir isso é que os estudos levem em conta a realidade e deixem de tentar
construir artificialidades para obter aprovação que não se sustenta.
O problema, então, na verdade, é que não estamos realizando
os estudos de modo competente. Esse é o problema e é a ele que nossos esforços
e recursos têm que se voltar.
É trabalhoso lidar com isso. Mexe com uma cultura instalada. Mas,
é mais uma daquelas situações nas quais – parafraseando J.K. Rolling – “temos
que escolher entre o certo e o fácil”...
Proibir o Judiciário de suspender obras por razões ambientais
depois de obtido o licenciamento (que passará a ser conseguido mediante a mera
apresentação do estudo, segundo a PEC), é tratar a febre do paciente com
pneumonia e só.
A PEC se ocupa de um sintoma
e não da doença em si...
O que atende aos princípios constitucionais da eficiência e
economicidade é que a proposição de obras seja realista, que os estudos sejam
efetivos, de tal forma que, uma vez obtida a autorização, ela também seja
efetiva. Não restarão arestas a serem aparadas pelo Judiciário.
A questão ambiental é de interesse geral. Nenhuma obra, seja
privada ou pública – especialmente a pública – está acima da avaliação dos
impactos ambientais. O contido na exposição de motivos e no pronunciamento do
Senador em Plenário reforça aquilo que já sabemos: as normas ambientais que
devem ser vistas como normas de caráter difuso e protetivas da vida presente e
futura, asseguradoras de boa parte da dignidade humana, são encaradas como
meras formalidades que podem ser mudadas ao desejo humano o que é, logicamente,
um erro, tendo em vista que não lida com grandezas humanas.
Gostemos ou não, há alguns limites da natureza que se impõem
a nós e a eles devemos nos submeter.
Isso implica em que não podemos mais agir nos espaços que
ocupamos? Não. Isso significa dizer que para
intervir nos espaços que ocupamos devemos considerar os limites físicos,
químicos, biológicos e usar a ciência para buscar formas de intervir com o mais
baixo impacto possível. De verdade, não de faz de conta.
O acidente de Mariana, cuja lama nem endureceu de todo ainda,
é, para nós, humanos, um choque de realidade. E essa realidade não é sensível a
formalidades e nós burocráticos. Delírio coletivo nosso se enxergamos diferente
disso. O colírio de Mariana parece não ter tido efeito, ainda.
Nesse caso da PEC 065, a questão ambiental é encarada de
maneira tão exclusivamente formal que sequer se considerou que tivesse que
passar pela Comissão de Meio Ambiente. Ou seja: não é a questão ambiental; é a
questão meramente formal.
A proposta, portanto, que, aparentemente é bastante singela,
inofensiva e benéfica para toda a sociedade, traz embutido um grande potencial
de desmantelamento do sistema de controle ambiental prévio. Tão inofensiva como
um filhote de leão, cinco anos depois.
“Não se concebe que um ato
normativo de qualquer natureza seja redigido de forma obscura, que dificulte ou
impossibilite sua compreensão. A transparência do sentido dos atos normativos,
bem como sua inteligibilidade, são requisitos do próprio Estado de Direito”. É
o que diz o Manual de Redação da Presidência da República.
Será mais um caso de dar
“Melhoral” para um doente com infecção galopante...