sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

EIRELI E A PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA

EIRELI E A PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA


A limitação da responsabilidade é uma permissão reconhecida àqueles que exercem empresa. Ela tem por escopo incentivar as pessoas a investirem na atividade empresarial, pois esse tipo de investimento, além de retornar para seu titular, também interessa a toda a sociedade, pois agrega valores sociais: postos de trabalho, tributos, desenvolvimento, avanço tecnológico e facilitação de acesso a bens e serviços.
Ela vinha sendo admitida para aquelas pessoas que exerciam coletivamente uma atividade empresarial, na modalidade de sociedade – limitada ou anônima.
Porém, no Brasil, para quem exercia a empresa de modo singular – o empresário individual – essa faculdade era vedada.
Com a edição da lei nº 12.441/2011, criou-se uma nova modalidade de pessoa jurídica – a EIRELI, art. 44, VI, CC – para permitir também ao empresário individual limitar a sua responsabilidade, ainda que de modo indireto.
No entanto, com as idas e vindas da apreciação do assunto no processo legislativo, por descuido, a redação final aprovada deixou de mencionar, expressamente, no caput do art. 980-A, CC, a destinação à pessoa física – necessidade histórica a que veio atender a lei – mas, fez referência à pessoa natural no parágrafo 2º do dispositivo. Isso deu margem a que interesses outros fossem levantados e abriu espaço para que se sugerisse que a novidade era também aplicável às pessoas jurídicas – inclusive estrangeiras -, que poderiam criar quantas EIRELIs desejassem e, mais, que as próprias EIRELIs instituíssem quantas outras EIRELIs quisessem, pois são elas mesmas, como dito, pessoas jurídicas.
Tal situação, inusitada, após reflexões e discussões cabíveis, foi repudiada pelos especialistas presentes na V Jornada de Direito Civil do CJF, que fixa recomendação de interpretação.
O Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC, órgão ao qual coube estipular as posturas para o registro da nova figura nas Juntas Comerciais, através da IN 117/2011, o fez em sintonia com este entendimento.
Importa fazer algumas considerações mais detidas a respeito, já que a questão vem sendo levantada em veículos de comunicação, com brevidade e reticência, para, em resumo, criticar a destinação exclusiva da EIRELI à pessoa natural, tendo por argumento, basicamente, que isso frustra o investimento estrangeiro no país, que viu na nova figura jurídica a possibilidade de entrar no Brasil sem ter que cumprir as exigências legais postas para tanto.
Vejamos.
Toda a reflexão e construção histórica a respeito da salvaguarda ao patrimônio pessoal daquele que empresaria sozinho se fez em razão da necessidade sentida pelas pessoas naturais.
Assim, a interpretação exclusivamente gramatical para afirmar-se a possibilidade do uso da EIRELI por pessoas jurídicas é frágil. Maior precisão encontra a interpretação teleológica. E, aí, não há dúvida: não há, sequer, menção sobre a possibilidade do seu emprego por sociedades empresárias.
Sustentar de outra forma é desvirtuar o instituto. Para isso não se criou a EIRELI.
A lei nº 12.441/2011, como já se fez referência, é resultado da aglutinação de dois projetos: o de nº 4.605/2009, do deputado Marcos Montes, ao qual foi apensado o de nº 4.953/2009, do deputado Eduardo Sciarra. Nas exposições de motivos de ambos os projetos em nenhum momento se fez qualquer menção à utilização da EIRELI por sociedades empresárias ou quaisquer outras pessoas jurídicas. Nada. Nenhuma palavra. Ao contrário: contundente a defesa na adoção do instituto em razão da necessidade de pessoas naturais na exploração negocial singular. 
Tanto que as redações originais das proposições eram as seguintes: no projeto nº 4.605/2009 - “Art. 985-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é o titular da totalidade do capital social e que somente poderá figurar numa única empresa dessa modalidade.” E no projeto nº 4.953/2009 – “Art. 980-A. Qualquer pessoa física que atenda ao disposto no art. 972, que exerça ou deseje exercer, profissionalmente, a atividade de empresário, poderá pode constituir Empreendimento Individual de Responsabilidade Limitada (ERLI).”
Patente que o instituto se destina a pessoas físicas e não jurídicas.
No entanto, no momento final, o deputado Odair Cunha imprimiu a redação que acabou sendo aprovada, omitindo-se a menção à qualidade natural da pessoa. Todavia, não há qualquer registro a respeito da omissão, nem uma justificativa para tanto, o que evidencia que foi acidental e não serve para estender a lei às pessoas jurídicas.
Outra não foi a conclusão da comissão de juristas presentes à V Jornada de Direito Civil, que aprovou o seguinte enunciado: “A empresa individual de responsabilidade limitada só poderá ser constituída por pessoa natural”, com a justificativa de que “A nova figura, embora tecnicamente questionável, deve ser de aplicação exclusiva às pessoas físicas, pois que se destina à proteção dos bens daquele que exerce a empresa de modo singular. Entender que ela se estende a pessoa jurídica não se alinha com sua própria razão de ser, descaracterizando-a. Além do mais, às sociedades brasileiras já é dada a formação de sociedade unipessoal, nos termos da lei nº 6.404/76.”
De fato, às sociedades brasileiras já é possível constituir sociedade unipessoal originária, nos termos do artigo 251 da lei das sociedades por ações. É certo que se permite tal constituição por meio de uma única modalidade societária: a sociedade anônima, que, no entanto, pode ser usada na espécie de sociedade fechada, que a simplifica sobremaneira.
Se se admitisse a abertura de EIRELIs por pessoas jurídicas, nos veríamos na esdrúxula situação de uma EIRELI instituir outra EIRELI que poderia instituir outra EIRELI e assim sucessivamente, distanciando-se dos responsáveis originais. Certamente, para isso não foi criada a figura em comento. Isso é claro.
Quanto ao fato de impedir o investimento estrangeiro no país, é necessário compreender que essa permissão teria o efeito deletério de pôr a nocaute todo o regramento para o exercício da empresa por sociedades estrangeiras no Brasil, que existe por algum motivo.
Claro que em tempos de crise econômica globalizada, investimentos são bem-vindos. Especialmente, se oriundos de recursos estrangeiros, porque injetam capital novo no país, aquecendo a economia. Todos somos sensíveis a isso: “dinheiro é bom e eu gosto”...
No entanto, por mais que isso possa nos desagradar, o direito de empresa não tem forças suficientes para derrogar preceitos que traduzem preocupações de ordem pública, como aparece no artigo 172 da Constituição da República. O investimento é desejável, mas dentro de alguns parâmetros mínimos de segurança e controle, para não acarretar mal maior. O Estado, como encarregado de compor as questões da macroeconomia a favor da sociedade brasileira, deve trabalhar com maior ou menor flexibilidade na atuação do capital estrangeiro no país, em apreciação multidisciplinar, que transborda os limites da economia e do direito.
Se o Brasil precisa – e precisa – de investimentos estrangeiros e eles se mostram ariscos às exigências nacionais, deve ser promovida a discussão ampla da flexibilização de tais regras. Não cabe aplicar a chicana da EIRELI para permitir que as sociedades estrangeiras venham aqui se estabelecer sem observância das normas, estabelecidas em regular processo legislativo, precedido de debates, que, em tese, representam o posicionamento da sociedade sobre o assunto.
A entrada de divisas é sempre festejada, inclusive por nós, advogados, que assessoramos todo o processo de ingresso do capital. O investimento estrangeiro é sempre causa de aquecimento econômico, como mencionado, e por isso merece nossa melhor consideração, que não é permitir a operação de empresa estrangeira no país por meio do subterfúgio da EIRELI, tornando desnecessária a autorização do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.  
É importante que o Brasil atenda ao interesse estrangeiro, mas não em detrimento do interesse nacional. É como se o investimento estrangeiro viesse pela porta dos fundos, nesse caso...
O Brasil não é terra de ninguém - por mais que tenhamos impressão contrária ao acompanhar os noticiários nacionais cotidianos. A lei existe e deve ser respeitada. Se a norma está em descompasso com os valores pátrios, a conduta acertada dos juristas é promover o debate que levará à alteração legislativa. Perdemos esse bonde ao não gerar discussão a esse respeito quando da confecção da lei da EIRELI...
Todavia, a oportunidade é excelente para o direito empresarial provocar a discussão a respeito dos limites e entraves ao capital estrangeiro no país, pois existe projeto de novo Código Comercial no Congresso Nacional. Aí está o fórum adequado para ajustar a questão de forma que melhor sejam atendidos e compatibilizados todos os interesses brasileiros, apresentando-se os dados necessários, na dialética indispensável. Está aberta consulta pública sobre o projeto, no site do Ministério da Justiça, aliás.
O contrário – reforço: ainda que não seja do nosso agrado - representa o desvirtuamento não só do novo instituto, mas de todo um sistema de regramento para a constituição de sociedades, especialmente, as estrangeiras no país, que – reprise-se - existe por algum motivo. Se o motivo não existe mais, é preciso rever a norma e não pegar carona na EIRELI.