Tenho uma natureza pacífica e
conciliadora. Bem, até mesmo por dever de ofício...
Prefiro sempre acreditar que os
rumos da vida, quer pessoal, quer social, podem ser corrigidos de modo amistoso
ou, pelo menos, civilizado.
Estou aqui me perguntando, desde
ontem, se as atrocidades dos
acontecimentos na cidade de São Paulo - que, ao menos, por ora, não podem ser
atribuídas aos manifestantes políticos: a probabilidade maior é de que tenham
sido obra de oportunistas - comparam-se às atrocidades
cotidianas do sofrimento individual de pessoas comuns do povo, por exemplo,
em sua odisseia para ir e voltar do trabalho, para ter atendimento de saúde,
para ter comida na mesa, para ver atendido algum direito estabelecido em lei...
Qual seria a atrocidade maior? São comparáveis?
As manifestações são um sintoma da sociedade doente que nos tornamos,
como a febre para a infecção... Uma reação fisiológica,
digamos assim, natural.
Não adianta, portanto, baixar a
febre: é preciso combater a infecção, sua causa.
Os casos que acontecem de vez em quando
de pessoas que surtam e têm um dia de fúria, metralhando crianças em
escolas, expectadores em cinemas, vizinhos e tirando a própria vida, em
seguida, também é outro tipo de sintoma dessa mesma doença social...
O cidadão é achacado, sistematicamente,
em muitas das relações que mantém com a sociedade, tanto nas instâncias
públicas como nas instâncias privadas, não encontra eco para sua insatisfação,
nem solução para suas angústias e as vai acumulando, acumulando e adoece.
A maioria desenvolve doenças
socialmente inofensivas, pois não
oferecem risco aos demais. Mas acarretam um custo social – o crescente número
de afastamentos ao trabalho motivados por depressão
atesta isso... para citar um caso.
A cura exige um processo demorado: a
opção da sociedade por educação de qualidade, que a médio e longo prazo nos
emancipará como povo e como país, está na base dessa cura.
Mas há muito mais a se fazer. Há
muitos outros cuidados a serem tomados para a recuperação desse paciente (que
agora está, ineditamente, impaciente...)
E somos nós que teremos que fazer.
Participar das manifestações pacíficas? Sim, claro. Com atenção, porque o lobo mau veste pele de cordeiro e confunde as pessoas. Queremos ser levados a sério, afinal...
Mas é preciso mais. A começar de nossas atitudes e
escolhas diárias, o que implica em desinstalar
hábitos inocentes há muito arraigados
em nós: as pequenas medidas de corrupção que praticamos no dia a dia.
Não compactuar com a corrupção. Mas
não é só lá em Brasília, não! Temos que começar nos nossos espaços de vida.
Isso vai acabar com a corrupção? Não imediatamente... Sempre há os que só têm
visão imediatista e não conseguem ver os benefícios de se viver honestamente.
Mas, vai diminuir muito a possibilidade de ação para eles.
Isso tem que ser uma opção consciente porque é um caminho
difícil, no contexto em que estamos e ainda por alguns anos. E será preciso ter
claro na mente o que estamos ganhando com a opção de romper individualmente com
isso, porque haverá momentos difíceis, momentos em que nos sentiremos bobos e nos perguntaremos se vale a
pena...
Depois, temos que transportar isso
para o momento do voto, é claro...
E usar os mecanismos legais e
sociais, com tenacidade e respeito, para cobrar o que nos seja devido como
sociedade, de nossos iguais e dos poderes constituídos.
O sinal de cura será quando nenhum de nós precisar buscar sustento nos lixões ou deitar-se no chão no corredor de um hospital à espera de atendimento...
Seria tão bom se a situação pudesse
ser mudada por um encantamento... Mas o encantamento é o despertar do Gigante, que apenas está abrindo os
olhos... Há um longo e belo caminho a ser percorrido por todos nós. Para que
possamos reconstruir nossa identidade, para que possamos construir
autorrespeito e ter o respeito das demais nações do mundo (afinal, esse é um
mundo globalizado...).
Se é que o Gigante despertou mesmo, temos que ter paciência e ajudá-lo a
andar... todos sabemos que aqueles que passam um grande período acamados
precisam de cuidados especiais para recuperar os movimentos.
É preciso dar as mãos ao Gigante.